Por que o corpo de Lenin foi mumificado? De quem foi a decisão?

A Gloriosa Bandeira de 1935
6 min readDec 30, 2021

--

Tradução de trechos do livro: “Practicing Stalinism: Bolsheviks, Boyars, and the Persistence of Tradition”, páginas 69–77. Autor: J. Arch Getty. Editora: Yale University Press, Ano: 2013. Trecho disponível, em inglês, aqui.
Traduzido por Thiago Ribeiro.

Feliz Dzerzhinsky com Lashevich, Bonch-Bruevich, Kliment Voroshilov, A. Y. Belen’kyi e Varlam Avanesov próximos ao caixão de Lenin, em 1924.

“Nada seria mais fácil e mais óbvio de se imaginar que, após a morte de Lenin, seus sucessores — com Stalin na liderança — rapidamente se reuniram em uma sala reservada e perceberam imediatamente a utilidade de preservar, exibir e adorar seu corpo. Um culto de Lenin fabricado de cima para baixo forneceria uma religião substituta para os camponeses, completa com as relíquias do fundador, para substituir a ortodoxia russa que eles estavam tentando destruir. Isso aumentaria a legitimidade dos sucessores de Lenin e do regime em geral, ao traçar a descendência desse regime de um fundador, que estava rápida e intencionalmente se tornando um progenitor mítico em cuja pirâmide os acólitos sucessores se posicionariam para demonstrar sua linhagem … Essa ideia, que não é incomum na literatura acadêmica, assume que os bolcheviques tinham um plano … Neste caso, parece que não havia nenhum plano, nenhum papel importante desempenhado por Stalin, mas uma série de propostas contraditórias, ad hoc e contestadas, refletindo contribuições de baixo e de cima. Os sucessores de Lenin tropeçaram e hesitaram por um longo tempo sobre o que fazer com seu corpo.

Em primeiro lugar, parece que Stalin teve pouco ou nada a ver com a decisão de exibir Lenin permanentemente. Ele não estava na Comissão Funerária de Lenin, presidida por Feliks Dzerzhinskii, onde tais decisões foram tomadas, e seu associado Kliment Voroshilov, que era um de seus membros, se opôs fortemente à ideia. Stalin era membro do Politburo, que acabou aprovando todas as recomendações da comissão, mas parece não ter desempenhado nenhum papel ativo na decisão. De acordo com rumores que surgiram décadas depois (nos anos 1960), Stalin foi o iniciador da ideia de mumificar Lenin antes mesmo de Lenin morrer, tendo supostamente sugerido isso em uma reunião informal de membros do Politburo em 1923, momento em que Trotsky se opôs veementemente à ideia. Esta história é bastante improvável à primeira vista. A ideia de que um estrategista político tão cuidadoso como Stalin falaria abertamente sobre o descarte do corpo de Ilich enquanto este ainda estava vivo, e na presença de seu arquirrival Trotsky, beira o ridículo. Os líderes mais antigos considerariam imperdoavelmente rude ter tal discussão enquanto seu querido Lenin vivia, e Stalin certamente não teria dado a Trotsky tal gafe de bandeja …

A decisão de preservar e exibir o corpo de Lenin foi tomada gradativamente ao longo de um período de anos, e não foi até 1929–1930 que seu local de descanso foi finalizado no mausoléu de pedra. A princípio, em 24 de janeiro de 1924, Lenin foi colocado no Salão das Colunas do Kremlin para ser visto pelo público. O professor Abrikosov embalsamou o corpo da maneira habitual para que durasse três dias até o funeral e o sepultamento. Ninguém pensou em velar o corpo por mais tempo. Dois dias depois, as enormes multidões obrigaram o Politburo a ordenar a transferência da exibição para a Praça Vermelha, perto do muro do Kremlin. O arquiteto A. V. Shchusev foi rapidamente convocado para projetar e construir uma estrutura temporária, que foi montada em 27 de janeiro. As multidões continuavam chegando, e logo Shchusev foi encarregado de projetar uma estrutura maior, que foi concluída algumas semanas depois. Mas não foi feito para durar. Era uma estrutura de madeira chamada de “mausoléu temporário”.

Comissão funerária de Lenin. Na primeira fileira, no canto direito estão Dzerzhinsky, Yenukdzie e Voroshilov.

Enquanto isso, durante o período de exibição prolongada … o corpo de Lenin começou a se decompor. A Comissão Dzerzhinskii foi consequentemente confrontada com a tomada de uma decisão de longo prazo sobre o corpo. Em fevereiro, o engenheiro e membro da comissão Leonid Krasin afirmou que poderia preservar o corpo por congelamento e, no dia 7, a comissão autorizou-o a comprar maquinários alemães caros para esse fim. Em 14 de março, o corpo continuou a se deteriorar e, embora Krasin continuasse a defender a ideia de congelamento, a comissão trouxe os professores Zbarskii e Vorob’ev com um novo procedimento químico para preservação a longo prazo. Só em 26 de julho a comissão tomou a decisão final de embalsamar e exibir Lenin para sempre, com base no procedimento de Zbarskii e Vorob’ev …

[Sobre] ter ou não um caixão aberto, houve um forte debate … Voroshilov questionou fortemente a sugestão de N. I. Muralov de exibir o corpo. Segundo Voroshilov, “Não devemos recorrer à canonização. Isso seria agir como os SR (Socialistas Revolucionários — N.T.)…”… Lenin teria aprovado? Provavelmente não, admitiu Dzerzhinskii, porque era uma pessoa de modéstia excepcional. Mas ele não está aqui; temos apenas um Lenin que não está aqui para julgar e a questão é o que fazer com seu corpo. Ele deixou de lado questões profundas, observando que todos amavam Lenin. Fotos dele eram preciosas; todos queriam vê-lo. Lenin era uma pessoa verdadeiramente especial. “Ele é tão querido para nós que, se podemos preservar o corpo e vê-lo, por que não o fazer?” “Se a ciência pode realmente preservar o corpo por muito tempo, então por que não o fazer?” “Se for impossível, então não o faremos.” … o grupo Dzerzhinskii ganhou o dia … Foi um processo bastante incremental.

Kliment Voroshilov e Felix Dzerzhinsky

Voroshilov, como vimos acima, tinha medo da hipocrisia e da adoração pessoal … Outros bolcheviques, como Dzerzhinskii … achavam que Lenin era um caso tão especial que não provocaria tais reflexos …

Assim como na preservação do corpo, a resistência aos monumentos tradicionais era forte … Em outubro-novembro de 1924, os bolcheviques seniores Lunacharskii e Krasin defenderam os monumentos. “A questão dos monumentos deve ser vista do ponto de vista das demandas do povo revolucionário.” O proletariado, eles argumentaram, tem um sólido senso de história e conexão com o passado. Os monumentos proletários, ao contrário dos burgueses, não são meros ídolos ou placas de sinalização. Monumentos proletários são “fontes de força tiradas das massas revolucionárias…. Um monumento revolucionário é uma coisa ativa; é um centralizador e transformador da força social … A sociedade revolucionária faz grandes feitos e, portanto, precisa se imortalizar”. “O Túmulo de Lenin já se tornou um centro magnético para as massas, que a visitam e cujas vozes literais de milhões de pessoas mostram que ela responde a uma profunda necessidade das massas.” “Somos uma classe orgânica unificada fazendo grandes coisas e, portanto, naturalmente monumental.”… eles concluíram “Não somos anarquistas. Temos grandes e brilhantes líderes. Então concluímos que monumentos e monumentalismo são completamente naturais em nossa vida revolucionária.” Voroshilov, que resistiu em exibir o corpo, achou que os monumentos eram bons para manter a memória. Afinal, ele tinha estado em Londres para ver o túmulo de Marx …

[Quando Lenin morreu] Milhares de cartas de condolências não solicitadas e telegramas choveram espontaneamente. A própria decisão de mover o corpo de Lenin do Salão das Colunas para a Praça Vermelha teve a ver com o controle da multidão e foi o resultado de milhares de pedidos do público, especialmente daqueles que não puderam chegar a Moscou a tempo de ver o corpo durante o período de exibição planejado originalmente. A decisão de construir o segundo mausoléu de madeira “provisório” e depois o terceiro mausoléu de pedra permanente teve causas semelhantes: as pessoas continuaram chegando, mais de cem mil nas primeiras seis semanas, apesar do frio intenso … choveram propostas das províncias para construir monumentos locais para Lenin e para nomear todos os tipos de coisas com seu nome. Sem permissão, foi construído em Cheboksarai uma réplica exata do mausoléu para ser usada como quiosque de venda de livros. Isso causou muita consternação em Moscou. Navegando na esteira da ação popular, o regime rapidamente entendeu que precisava obter o controle desse processo, e se arrogou o direito de aprovar ou desaprovar tais pedidos; nada poderia ser construído sem sua aprovação. Posteriormente, muito do trabalho da Comissão Dzerzhinskii consistia em aprovar (mas principalmente desaprovar) essas propostas, que incluíam tudo, desde uma proposta de um mausoléu eletrificado, completo com raios, até renomear os meses do calendário porque, como disse um escritor de cartas, “ Lenin foi o salvador do mundo mais do que Jesus.”. ”

Corpo mumificado de Lenin em exibição no Mausoléu.

--

--

A Gloriosa Bandeira de 1935
A Gloriosa Bandeira de 1935

Written by A Gloriosa Bandeira de 1935

Traduções de artigos, história das lutas do povo brasileiro e ao redor do mundo e os resultados das minhas pesquisas sobre o marxismo-leninismo-maoísmo

No responses yet